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2004-10-19

Relicário 

Entre todas as coisas que tenho guardado ao longo da vida, as que sobreviveram às pontuais fúrias de limpeza e organização, tenho um modesto dossier que personalizei há tanto tempo que nem quero lembrar quando foi, onde guardo pedaços, palavras, frases, poemas, fotografias, recortes, canções, bilhetes de concertos, cartazes, tudo e nada.
As noites frias, intimistas por excelência, levam-me de vez em quando à estante onde o guardo. Mais do que retirá-lo do seu lugar, cuidadosamente, quase religiosamente, o processo é uma espécie de descanso da guerreira. É um regresso a mim mesma, umas tréguas com a vida quotidiana e impessoal que, de alguma forma, somos forçados a viver.
Sou talvez um pouco saudosista e dá-me prazer este ritual. Há dias, para procurar os textos da Maria Rosa Colaço e do António Ramos Rosa que aqui transcrevi, o dossier saltou uma vez mais para as minhas mãos. Ainda não voltou à estante. Está aqui à minha frente, ao lado do monitor, enchendo-me os olhos com o seu azul forte onde bruscamente surge uma pomba branca, herança de adolescência iconográfica e idealista, com o único grafismo de que sou capaz, que as minhas mãos não se talharam para o desenho.
Este dossier, muito mais pobre do que mereceria, transporta-me a tempos de preocupações menos pragmáticas do que as contas para pagar. Relembra-me o sonho, por si só. Acorda a vontade de criar. E dá-me uma quase furiosa vontade de aqui deixar tantas e tantas palavras de outros, mais do que as minhas, para que o sonho e a poesia vivam nestas noites frias, chuvosas, quase violentas.
Escolher um não é tarefa fácil. Entre a procura constato que, sobre todos os outros, prevalece Eugénio de Andrade. Em pequenos versos, mais do que textos completos. E penso que há tanto tempo não me esqueço de tudo o resto para reler este poeta que tanto me acompanhou. E penso que, uma vez que hoje o sono me está a dar tréguas, poderia sentar-me no chão, de pernas à chinês, como diz a minha filha, e reler a sua tradução das cartas da Mariana Alcoforado, a sua poesia, redescobrir notas à margem e sublinhados, papelinhos soltos deixados entre as páginas, pistas para confrontar com outras obras. E penso que a noite é muito pouco, a vida é muito curta para tudo o que merecemos viver.
Hoje apetece-me reler e o tempo é pouco. Mas amanhã apetecer-me-á descobrir novas palavras e o tempo será menos ainda.
Tão ingrata é a nossa existência. E tanto tempo gastamos em lamentos, como agora, e em horas vazias.

O meu mal é sem remédio. O que eu queria era água, água. Água de quatro bicas, sobre a garganta. Para adormecer. Com o sol na boca.” Eugénio de Andrade.




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