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2004-10-29

Ser alentejano é um estado de alma 

Não é de estranhar o tema. Além de ser recorrente em mim, não necessariamente neste blog, acresce que estou de viagem para o Alentejo.
Quando eu era pequena, a véspera da viagem levava para esse interior o sono. A ansiedade apoderava-se de mim, os preparativos ultimavam-se com imensa antecedência, o assunto dominava o meu pensamento.
Agora já não é bem assim, há tantas coisas em que pensar. Mas a alegria é a mesma.
No Inverno, sei que me espera em casa dos meus avós o lume aceso na grande cozinha. Sei que o cheiro da terra molhada, a balbúrdia da família que não cessa de crescer, a terra que vai aplanando à medida que vencemos os quilómetros, o cheiro das ruas, o barro vermelho, me esperam com a mesma ansiedade com que a eles me entrego.
Não nasci no Alentejo, ao contrário do que diz a moda que, de vez em quando canto pela casa, ao contrário do que pensam muitos dos que me conhecem. Nasci além do Tejo, isso sim. Mas o sangue que me corre nas veias, como tantas vezes tenho repetido ao longo da minha vida, é puramente alentejano. Sou um puro-sangue, digam o que disserem.
Ser alentejano é um estado de alma. Faz-se da intensidade com que sentimos, com que rimos, com que amamos, com que nos entregamos. Faz-se da generosidade e do sentido de sacrifício; de boletas e de linguiça; de cadeiras de verga e de chocalhos; de queijo fresco e de camas de ferro pintadas de branco; de trigo e de modas cantadas por homens de braço dado; da cal e de barras azuis; de água fresca e de girassóis; de fatalismo e de esperança; de luta e de sofrimento; de coragem e de sentido de humor; de cães deitados nas ruas e de galeras carregadas de grão; de mãos grandes e fortes; de pele tisnada pelo sol; de mulheres de fartos bigodes que nos dão beijos molhados e que são ainda nossas primas; de recato; de coração.
Sou alentejana, para o que der e vier. Já não lamento não ter nascido no Alentejo, isso em nada mudaria aquilo que sinto, aquilo que sou.
Sou alentejana e volto hoje às minhas raízes.
“Meu coração, alentejo de orvalho.”




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2004-10-28

Rocco Buttiglione 

Ele diz que a homossexualidade é uma doença. Que as mulheres existem para estar em casa a tratar dos filhos. Que as mães solteiras não são boas mães. É de direita. É amigo do Papa menos humano dos últimos tempos. E o nosso ex-primeiro ministro quer tê-lo na sua equipa de trabalho.
O Parlamento Europeu, que algumas vezes nos dá mostras de alguma lucidez, não quer ouvir falar disso.
Eu acho que tudo isto é uma anedota, uma manobra para nos distrair das pressões políticas exercidas sobre Marcelo Rebelo de Sousa que, oportunamente, se faz de vítima do sistema, falando em prestações, controlando o suspense, como se de um realizador de thrillers se tratasse. Eu acho que, por mais que Durão Barroso se posicione à direita, não escolheria um Le Pen seminarista para seu companheiro de trabalhos. E daí, talvez me engane. Talvez tudo isto seja verdade e precisemos mesmo de acordar e reagir, em vez de respondermos às imposições injustas e ultrajantes que “já estamos habituados”.
Durão Barroso é o homem que nos deixou entregues ao (des)governo incompetente e indeciso de Santana Lopes. Mudaram só as moscas, é certo. Mas o seu patriotismo, esse que se espera de quem é chefe do governo de um país, mostrou-se assente em pés de barro. Ou em pés de sede de poder e de protagonismo.
Este Sr. Rocco é hediondo. Homem a abater, politicamente falando. E nós que temos o representante máximo da Igreja e o próximo presidente da Comissão Europeia lendo pela mesma cartilha, continuamos a perder tempo com celebridades que não o são nem serão nunca, com lotarias milionárias, com livros da Margarida Rebelo Pinto e do Nicholas Sparks, enquanto nos cozinham o futuro em lume brando.
Eu cá voto é nesse grupo que anda por aí a querer acusar o Papa de atentado à saúde pública por continuar a desencorajar o uso do preservativo.




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2004-10-26

Vamos brincar à caridadezinha 

Então não é que vivemos mesmo uma revolução?!
A julgar pelos acontecimentos mais recentes, isto fazendo por esquecer outros não tão passados como gostaríamos, poderíamos acreditar que vivíamos ainda no tempo da outra senhora. Mas não. A revolução fez trinta anos.
Mas a que propósito vem esta chata agora aborrecer-nos outra vez com a conversa da revolução?, perguntam os mais distraídos. Pois bem, para além de ser de extrema importância relembrar aquilo que não queremos que se esqueça, tenho finalmente nas minhas mãos o “Vamos brincar à caridadezinha”. E mais outras quarenta fantásticas canções. Tudo acordado sem esforço na memória de quem cresceu neste ambiente da revolução feita festa.
O CD é duplo. A escolha foi decidida apenas por esta faixa, que muitas outras colectâneas me piscavam o olho rebelde.
Esta, actualíssima, do José Barata Moura, conta assim, resumidamente:

Vamos brincar à caridadezinha
Festa, canasta e boa comidinha
Vamos brincar à caridadezinha

A senhora de não sei quem
Que é de todos e de mais alguém
Passa a tarde descansada
Mastigando a torrada
Com muita pena do pobre,
Coitada

Vamos brincar à caridadezinha
Festa, canasta e boa comidinha
Vamos brincar à caridadezinha

Neste mundo de instituição
Cataloga-se até o coração
Paga botas e merenda
Rouba muito mas dá prenda
E ao peito terá
Uma comenda

Vamos brincar à caridadezinha
Festa, canasta e boa comidinha
Vamos brincar à caridadezinha

O pobre no seu penar
Habitua-se a rastejar
E no campo ou na cidade
Faz da sua infelicidade
Algo para os desportistas
Da caridade

Não vamos brincar à caridadezinha
Festa, canasta e a falsa intençãozinha
Não vamos brincar à caridadezinha




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2004-10-20

Dias felizes 

Não há como as semanas curtas, com dias de férias pelo meio, para os dias parecerem intermináveis. Os planos para o fim de semana prolongado bailaricam sobre o trabalho, as conversas de circunstância, os atropelos do trânsito e do clima, e a única coisa verdadeiramente insuportável é o tempo que não passa.
Não são todos assim. Provavelmente os mais ansiosos são aqueles em que os planos vão além do sofá, por muito boa companhia que se tenha, ou dos limites do concelho em que nos movemos. É o caso, pois claro.
As férias são sempre bem vindas e, se há momentos em que precisamos absolutamente de nos afastar de tudo o que nos cheire a trabalho, outros há em que, mais do que desse afastamento, precisamos de nos (re)aproximar do amor e da serenidade. Dos sorrisos límpidos dos que nos amam. Do prazer de andar de carro procurando o arco-íris. De molhar os pés na gelada água do mar. De ter o vento a despentear-nos o cabelo. Da liberdade, ainda que relativa.
Ai, que já não sei o que digo. Sei apenas que, por uns dias, poucos, muito poucos, vou ter sol no olhar e água fresca nas mãos. E enquanto isso me mantiver acima da vacuidade e do cinzentismo do quotidiano, sou uma pessoa feliz.




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2004-10-19

Relicário 

Entre todas as coisas que tenho guardado ao longo da vida, as que sobreviveram às pontuais fúrias de limpeza e organização, tenho um modesto dossier que personalizei há tanto tempo que nem quero lembrar quando foi, onde guardo pedaços, palavras, frases, poemas, fotografias, recortes, canções, bilhetes de concertos, cartazes, tudo e nada.
As noites frias, intimistas por excelência, levam-me de vez em quando à estante onde o guardo. Mais do que retirá-lo do seu lugar, cuidadosamente, quase religiosamente, o processo é uma espécie de descanso da guerreira. É um regresso a mim mesma, umas tréguas com a vida quotidiana e impessoal que, de alguma forma, somos forçados a viver.
Sou talvez um pouco saudosista e dá-me prazer este ritual. Há dias, para procurar os textos da Maria Rosa Colaço e do António Ramos Rosa que aqui transcrevi, o dossier saltou uma vez mais para as minhas mãos. Ainda não voltou à estante. Está aqui à minha frente, ao lado do monitor, enchendo-me os olhos com o seu azul forte onde bruscamente surge uma pomba branca, herança de adolescência iconográfica e idealista, com o único grafismo de que sou capaz, que as minhas mãos não se talharam para o desenho.
Este dossier, muito mais pobre do que mereceria, transporta-me a tempos de preocupações menos pragmáticas do que as contas para pagar. Relembra-me o sonho, por si só. Acorda a vontade de criar. E dá-me uma quase furiosa vontade de aqui deixar tantas e tantas palavras de outros, mais do que as minhas, para que o sonho e a poesia vivam nestas noites frias, chuvosas, quase violentas.
Escolher um não é tarefa fácil. Entre a procura constato que, sobre todos os outros, prevalece Eugénio de Andrade. Em pequenos versos, mais do que textos completos. E penso que há tanto tempo não me esqueço de tudo o resto para reler este poeta que tanto me acompanhou. E penso que, uma vez que hoje o sono me está a dar tréguas, poderia sentar-me no chão, de pernas à chinês, como diz a minha filha, e reler a sua tradução das cartas da Mariana Alcoforado, a sua poesia, redescobrir notas à margem e sublinhados, papelinhos soltos deixados entre as páginas, pistas para confrontar com outras obras. E penso que a noite é muito pouco, a vida é muito curta para tudo o que merecemos viver.
Hoje apetece-me reler e o tempo é pouco. Mas amanhã apetecer-me-á descobrir novas palavras e o tempo será menos ainda.
Tão ingrata é a nossa existência. E tanto tempo gastamos em lamentos, como agora, e em horas vazias.

O meu mal é sem remédio. O que eu queria era água, água. Água de quatro bicas, sobre a garganta. Para adormecer. Com o sol na boca.” Eugénio de Andrade.




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2004-10-18

António Ramos Rosa 

Eu não tenho a certeza porque foi já há muito tempo, mas poderia apostar que foi com este poema que António Ramos Rosa me cativou. Ou melhor, foi com este poema que o poeta marcou lugar na minha estante de memórias, de referências. Por isso é este o poema que aqui deixo para assinalar o seu 80º aniversário.

"Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração. "




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2004-10-15

Morreu Maria Rosa Colaço 

“Junto destes olhos
Eu sou testemunha
Que a ternura nasce
Por coisa nenhuma

Por coisa nenhuma
Semente de nada
Dentro destes olhos
Espero a madrugada

Espero a madrugada
Espero o dia novo
Junto destes olhos
Raiz do meu povo

Por coisa nenhuma
Semente de nada
Junto destes olhos
Espero a madrugada

Espero a madrugada
Espero o dia novo
Junto destes olhos
Esperança do meu povo

Por coisa nenhuma
Semente de nada
Dentro destes olhos
Espero a madrugada.”






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2004-10-14

Maria Rosa Colaço viva em Abril 

"Diga-se CAMARADA. E diga-se! Mas não esquecendo os dias em que estas oito letras eram passaporte para o ar mais puro do tempo imaginado; o santo e a senha para as fronteiras sem medo.
Diga-se CAMARADA. E diga-se!
Mas não esquecendo os dias em que outros, por a escreverem num envelope simples, assim, descuidadamente como te escrevo hoje, tiveram o prémio da tortura e da humilhação, da fome e do tempo sem horas.
Diga-se CAMARADA. E diga-se!
C como CAMARADA
A como AMOR
M como morte
A como AMOR
R como raiva
A como AMOR
D como desespero
A como AMOR
Com AMOR, Morte, Raiva e Desespero se escreveu teu destino para sempre e para nunca, Camarada-Amor, Amor-Camarada, Amor-Morto, Camarada-Perdido sem cravos sobre a Terra sem braços erguidos para te saudarem, camarada anónimo sangue-semente da minha Pátria amada, renovada e livre que aqui invoco, que aqui estremeço.
Hoje, em Abril, metade de mim para sempre na António Maria Cardoso onde morreste dizendo poemas e o teu nome, liberdade, e o resto de mim repetindo morango maduro deste mês sempre novo, desta palavra doce e salgada feita de Tejo e do Sol, o teu nome.
companheiro-militante-morto
o teu nome irmão humilhado e torturado
o teu nome de irmã livre de face ao Sol e à raiva
Catarina de Baleizão
o teu nome meu pai de lábios fechados para a denúncia
e olhos feridos pela coragem dos vinte e oito anos sem amanhã
o teu nome o teu nome o teu nome
ó grande muralha de nomes abnegados e renascidos
ó grande parede branca onde a alegria
é um cravo vermelho, o mais vermelho desta luta e deste mês
que não podemos perder.
Que não podemos perder.
Que não podemos perder."






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Brinquedo novo 

É o que faz ser-se leigo em certas matérias. Nomeadamente em certas linguagens tipo html e outras que tais. Nenhuma de nós percebe nada disto. Mas não desistimos logo à primeira dificuldade. Quando não se sabe, procura saber-se. Depois é um “vê se te avias”. Não repararam já na cara semi-nova do blog? Está todo amaricado ou, pelo menos, tem mais coisas do que as que seriam necessárias ou mesmo convenientes para uma abertura de página mais rápida. Mas tomámos-lhe o gosto. Agora até já podemos honrar os nossos amigos com um link para os seus blogs. E deixar-vos sugestões. E assinar os posts sem confusões para quem os lê. É que nós não sabíamos fazer nada disto. Sabíamos apenas escrever e não tão bem como desejaríamos.
O trabalho continuará. Esperamos que se divirtam tanto a visitar-nos como nós nos divertimos a arrumar a sala.





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2004-10-13

Histórias da carochinha 

Temos este Governo. É o que temos, pois.
Querendo que ignoremos “ruídos” pretende que não demos importância à censura azulinha com que nos atapetam a vida. Conta com a nossa estupidez, com a nossa memória curta e com a conhecida serenidade deste povo. Está cheia de referências fascistas esta frase, não está? O nosso Governo também. Conta também com a nossa distracção para aceitar um discurso proferido em tom marcelista onde nos vende o peixe estragado por promessas vagas e desculpabilizações várias.
Nada de novo, até aqui, infelizmente. Mas, na corrente onda do contraditório, e falando de finanças que é afinal aquilo em que mais interfere connosco, este Governo não se entende. O Primeiro Ministro diz e o Ministro das Finanças desdiz. Nos écrans. Aparentemente, sem discussão prévia. Aparentemente sem o trabalho de casa preparado. Aparentemente sem conhecerem a matéria.
Nós vamo-nos aguentando. Não compramos o peixe, mas o seu cheiro incomoda-nos e ameaça propagar-se à sanidade que julgamos manter.
Acenam-nos com a retoma, mas os nossos bolsos continuam a ficar vazios antes do tempo, por muita ginástica estomacal que façamos. Agitam a bandeira das reduções fiscais e dos aumentos salariais mas nós já ouvimos dizer que o Ministro das Finanças não é mágico.
Procuram fugir aos ruídos, mas o barulho ensurdecedor do desemprego, da precariedade, da pobreza, do analfabetismo, do desalento não nos deixa dormir, por mais que contemos a história da carochinha aos pequenos lá de casa.
Este Governo já me cansa. O próximo também. Mas afinal dar a volta a isto não está nas nossas mãos?
Mesmo sem príncipes e princesas, queremos viver felizes para sempre.




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