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2004-12-06

Cemitério de afectos 

Este tema só despertou em mim por o ver abordado no Notícias Magazine, porque é mesmo de cemitério que se trata –e eu, mesmo os meus mortos reais, não os visito nessa sua derradeira morada-, ainda que seja um cemitério sem flores nem saudade.
Pela nossa vida vamos procurando e, pontualmente, encontrando aquelas pessoas que julgamos personificar o amor de que se precisa para se respirar fluentemente. Não direi os mais sortudos porque em boa verdade não acredito que o sejam, mas alguns de nós acertam à primeira, ou não se dão ao trabalho de procurar melhor, não sei bem. Outros de nós enganam-se sucessivas vezes.
Nesses enganos, em cada um desses enganos, há uma parte de nós que se entrega, que se molda, que recebe, que acredita, que quer, que aceita. A relação dura enquanto pode e após terminar, de mútuo acordo ou não, fecha-se a gaveta. Ou assim deveria ser. Esse amor, quando o foi verdadeiramente, não pode transformar-se em nada senão numa gaveta fechada. Assim como quando começámos por ser pobres, depois enriquecemos e voltámos a ser pobres. Já não conseguimos aceitar a pobreza como a aceitávamos antes de conhecer algo melhor. Com os amores é a mesma coisa. Não podemos voltar a ser amigos de quem, em determinado momento, foi mais do que isso.
Essas pessoas, a quem nos entregámos, que com amor recebemos, deixam de ter lugar na nossa vida. Não existe uma arrecadação onde, salutarmente, as possamos guardar.
Presume-se que, entre pessoas civilizadas, a relação de amizade se mantenha, até porque os amigos, os interesses, os hábitos continuam a ser os mesmos. Mas isso é, se não outra coisa mais inqualificável, um total desrespeito pelo amor que sentimos.
Nunca me pesou rasgar folhas da minha vida passada, rasgar fotografias e cartas, números de telefone e bilhetes de cinema gatafunhados. Até as memórias, que essas só existem enquanto as fizermos perdurar. É assim que temos espaço para recomeçar. É assim que faz sentido. É assim que pode ser.
Como podemos recomeçar o processo da entrega se parte de nós está ainda na memória dessa outra história? Como podemos ter a vida ordenada se abrimos uma gaveta sem termos fechado outra? Quem se entende em tamanho caos? Cada gaveta aberta tem um mundo lá dentro. Um mundo que não podemos renegar porque faz parte de quem somos. Mas quem somos hoje, ainda que resultante do que fomos ontem, não quem fomos ontem misturado com o que somos hoje.
Os afectos gerem-se com dificuldade, exigem alguma perícia mas, acima de tudo, exigem uma entrega total. Por isso não é na Terra do Nunca que devemos arrumar as chaves das gavetas que fechámos; é na Terra de Ninguém.




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